Lidar com memórias de guerra não é fácil. Pior quando, à posteriori, o juízo colectivo pende para uma sentença histórica e política que não é abonatória sobre o sentido, significado e desfecho do esforço, da dádiva e dos riscos que consumiram corpos e almas numa gesta inglória porque terminou em derrota.
Parte das centenas de milhares de portugueses fardados que andaram na guerra colonial e ainda sobrevivem andam por aí. Existem. Arrastando as marcas da idade e das insónias da memória. Da sociedade, ora recebem o tratamento reservado aos vencidos e esquecidos ou procuram fazer deles um uso instrumental como bandeira serôdia de um saudosismo patriótico-colonial sem sentido nem proveito, a não ser como expressão impotente de rancores perante a lógica da história. Mas a maioria nem sequer quer perder tempo a saber que eles existem, ouvindo-lhes estórias enfadonhas dos seus feitos e tormentos, uns generosos e outros patifes, quando lidavam com os medos e os instintos de sobrevivência e desforra nos matos africanos para onde, os senhores de então, os mandaram fardados cumprir uma obrigação dita como patriota e indiscutível.
Mas se a memória permanece em brasa, que destino dar aos ecos dos gritos dessa experiência brutal que se espetou nos melhores anos da juventude? A catarse faz-se falando e não calando. E é por isso que muitos dos antigos combatentes regridem aos seus velhos hábitos gregários, agora como guerreiros envelhecidos, desarmados e naif, aturando-se uns aos outros, trocando ecos das ressonâncias memorizadas e alimentando a auto-estima pela sensação fresca de, na estupidez daquela guerra prolongada em três frentes, terem conseguido conservar a humanidade e, entre tanto medo, tanta aflição, tanta metralha, tanta dor, tanta solidão e tanta ignomínia, conservarem afectos para com aqueles que foram e são os amigos e camaradas de sempre e para sempre. Com os sinais das décadas a pesarem nas costas, a levarem o cabelo e a incharem as barrigas, mostrando fotografias gastas e de poses ridículas, desfiando aventuras e historietas, gerindo o melhor que conseguem o facto de serem uma espécie de epifenómeno da memória portuguesa. Entre eles, uns com os outros, não se sentem nem ridículos nem vencidos. Porque jogaram juntos na roleta da vida e morte, do mata ou morres, do aguenta para ver se sais daí vivo e inteiro, prisioneiros uns aos outros numa fraternidade construída no limite como se aquela farda os tivesse tornado irmãos e não guerreiros. Também é uma espécie de desforra - já que os desprezam ou os esquecem ou os querem manipular, recusam-se a envelhecer e passar ao silêncio da história, representando, entre eles, a ilusão de que voltaram a ser jovens, aguentando-se no balanço, vendo a guerra longínqua como uma brisa que por eles passou e os deixou mais humanos, porque foram sujeitos ao paradoxo da suprema fragilidade de se ter uma arma na mão. Como se a guerra tivesse sido sobretudo - e não foi! a façanha de se aguentarem e ajudarem-se no limite, apenas isso, mais as lágrimas que ninguém pode secar pelos camaradas-irmãos que morreram ao lado ou nos braços ou os outros de quem se viram pernas e pés saltarem no ar como pedaços soltos. E todos acham, entre si, que são jovens e bons rapazes porque, no mínimo ou no máximo, transmutam-se pela reciclagem na caserna da memória. E é assim que perdem a vergonha e o rancor perante o esquecimento social, sem o peso das noções do conveniente e do ridículo, dado que essas foram gastas no absurdo do medo, quando ficaram entregues a si próprios e à missão, com uma G3 como companheira, aquela que o fascismo-colonialismo achou que era a noiva merecida para as fornadas de jovens que o País debitou entre 1961 e 1974. Se os esquecem, eles não se esquecem.
O
Luís Graça, antigo combatente na guerra da Guiné-Bissau (1963-1974) [que não conheço pessoalmente mas que combateu na Guiné exactamente no mesmo período em que por lá andei (1969-1971)], conseguindo conciliar isso com os seus muitos afazeres de professor universitário e de especialista em saúde pública, teve a meritória ideia de construir um
blogue e incentivar uma
tertúlia em que os ex-combatentes naquela frente das guerras coloniais trocam impressões, imagens e memórias, tecendo simultaneamente uma espécie de redenção de respeito para com a terra onde combateram, para com o seu povo e os que, do lado do PAIGC, cumpriram, à sua maneira, as suas missões simétricas numa guerra em que nos venceram. E os princípios de adesão e participação ao blogue e à tertúlia são claros e de rigor ético:
(i) respeito uns pelos outros, pelas vivências, valores e opiniões uns dos outros; (ii) manifestação serena mas franca dos nossos pontos de vista, mesmo quando discordamos uns dos outros; (iii) carinho e amizade pelo povo da Guiné; (iv) respeito pelo inimigo de ontem; (v) respeito acima de tudo pela verdade dos factos.Fica aqui o convite-apelo a todos os que combateram na Guiné-Bissau e se queiram acolher às casas de amizade e catarse que o Luís Graça em boa hora construiu para nosso uso, para que não hesitem e a nós se juntem. Também para chatear os que querem servir-nos amnésia como paga histórica. E para que se saiba que existimos. Que, pelo menos, existimos como nós.
Pela minha parte, obrigado
Luís Graça. Com a companhia de um abraço camarada.
Imagem: Peças de artilharia abandonadas pela tropa portuguesa no quartel de Bambadinca (Guiné-Bissau), fotografadas em 2001 por David Guimarães.