Jorge Sampaio não quis terminar o seu mandato sem prestar a anunciada e devida homenagem aos mártires portugueses do Campo de Concentração do Tarrafal. E aproveitou a ocasião para apelar á renovação dos defensores da democracia. Pelo que
aqui se lê:
O Presidente da República não tem dúvidas de que as frentes de luta são actualmente muito diferentes das do passado, mas precisam sempre de uma permanente renovação da democracia. Por isso, Jorge Sampaio, que liderou os protestos dos estudantes contra o Estado Novo em Lisboa no início da década de 60, não quis terminar o mandato sem prestar esta homenagem, em nome do Estado Democrático e da República Portuguesa, aos 32 mortos no Tarrafal. O Chefe de Estado, que visitou o Tarrafal durante a sua primeira visita de Estado a Cabo Verde em 1997, condecorou em diferentes momentos com a Ordem da Liberdade os presos políticos sobreviventes no Tarrafal.Depois, solenizou a inauguração de uma lápide no Mausoléu dos mortos (assassinados) no Tarrafal onde se lê:
Aos que na longa noite do fascismo foram portadores da chama da liberdade e pela liberdade morreram no campo de concentração do Tarrafal.
É bom que não se esqueça que Salazar instalou em Cabo Verde um campo de concentração concebido e a funcionar segundo o clássico modelo nazi. Que nesse campo de vergonha lusitana, muitos combatentes contra o católico-fascismo foram condenados à morte lenta por, de uma ou outra forma, muitas vezes por ínvios caminhos que levariam se cumpridos os desejos de alguns - a uma ditadura alternativa, devemos à sua coragem de luta andarmos hoje por aqui a gozar da liberdade e da democracia que respiramos como bem que parece brotar das fontes da natureza.
Desse martírio de luta e da perfídia cruel e assassina do católico-fascismo à portuguesa, encorpado em Salazar, Cerejeira e Caetano, não regressaram vivos 32 dos lutadores deportados e internados naquela miserável empresa de tortura, humilhação, doença e morte. Os sobrevivos voltaram combalidos e ostracizados. Envelheceram, depois a doença e a lei da idade cumpriram o destino marcado no envio para o Tarrafal, restando uma meia dúzia para amostra. E, atravessados tantos anos de democracia, em que quase tudo se esquece, nomeadamente que a democracia não é nem nunca foi um dom da natureza, o Tarrafal e os tarrafalistas são uma espécie de relíquia incómoda e fora de moda. Porque, hoje, os heróis são os campeões da Liga do Mercado e do Santo Liberalismo Blasfemo. Entende-se bem, pois que
Edmundo Pedro, um dos presos políticos sobreviventes do Tarrafal, criticou o desprezo dos políticos pelo que aconteceu em Cabo Verde. E considerou que os responsáveis políticos parecem ignorar ao longo de mais de 30 anos de vida democrática o significado daqueles acontecimentos. Um povo que não respeita a sua memória não tem futuro, concluiu.
Jorge Sampaio fez bem ao prestar esta homenagem. Mas, como já disse e repeti, esta homenagem, nos termos limitados em que foi prestada, cobre o Presidente da República e os tarrafalistas portugueses da mancha de um outro esquecimento, ainda mais injusto e inadmissível não se lembrar, pelo menos com o mesmo relevo e honra, as vítimas do Tarrafal na sua segunda fase de funcionamento, quando desde o início dos anos sessenta até 1974, o Campo foi reaberto para internar, torturar e eliminar os militantes africanos anti-coloniais. A meu ver, a distinção privilegiada, feita por omissão nesta homenagem, entre prisioneiros portugueses e africanos, afinal todos sofrendo sob a mesma ignomínia da sanha soberana do Estado português, católico-fascista-pidesco, é prova de um euro-centrismo inadmissível e ofensivo para com os povos irmãos africanos, esquecendo que a luta pela liberdade só faz sentido se for universal. E não entender que a liberdade e a democracia que hoje respiramos deve tanto ao antifascismo metropolitano como ao anticolonialismo africano. Para mal, apenas, dos fascistas, dos pides e dos colonos.
Pior que o esquecimento de Sampaio e dos tarrafalistas, talvez só mesmo a amnésia sobre a luta anticolonial, o sofrimento colonial dos africanos, os internados africanos no Tarrafal, demonstrada em tantos blogues africanistas e saudosos de África, muitas vezes fixados na infância e juventude imbebidas no sortilégio africano do lado branco, ou em fruições cooperantes, de intercâmbio ou amizade, mas que afinal demonstram que esse amor a África é incomensuravelmente superior ao amor aos africanos e ás suas lutas, muitas vezes perversas, sinuosas e pérfidas, para o direito ás suas independências e vidas adultas. Demonstrando que se pode amar um objecto mas não a sua essência. E, como em tudo, a essência de tudo são, só podem ser, as pessoas.