Respeito a magnitude dos sentimentos antiamericanos. Com eles comungo, julgando que chega e não é nada pouco, a
rejeição da desordem da organização económica e social, da selvajaria nas exclusões, da inumanidade para com os fracos e os desprotegidos, da supremacia constante das regras e posturas que protegem sempre os mais fortes e dos fetiches relativamente ao Ter e a subjugação aos seus símbolos. Não esquecendo que, ali nos Estados Unidos, os males do capitalismo coabitam com a democracia e a liberdade.
Pragmaticamente reconheço que a sobrevivência e pujança do capitalismo americano se alimenta da busca e atracção que ele exerce sobre enormes massas espoliadas das sete partidas do mundo que, pela oportunidade da via do trabalho e do capital, ali procuram fugir à indignidade da miséria e saltar degraus na conquista da auto-suficiência ou, quiçá, da prosperidade. Porque são os pobres do mundo que não só conservam a riqueza da América como a revigoram. E sobra-me um enorme espanto e respeito que, pese embora o deslizamento eleitoral (sobretudo pela incorporação de massas crescentes de eleitores de origem hispânica) para o campo direitista-conservador (de que G W Bush é o fruto apodrecido), a América se mantenha como paradigma da democracia e a quem devemos, no meio de escolhos e trambolhões hegemónicos e imperialistas, o principal suporte do estar democrático no mundo. Porque, talvez misteriosamente (?), o fim ou descalabro da América seria, simultaneamente, o fim do regime provavelmente mais iníquo social e economicamente mas também, sem dúvida, o precipício na regulação do mundo (pela perda do seu principal referencial positivo e negativo) e a fragilização destruidora da liberdade e da democracia. Queira-se ou não,
sem a América (mesmo esta América), o mundo não está preparado para lhe sobreviver. Contra isto, só vejo sobrarem os argumentos dos adeptos do
caos criador ou das miríades de utopistas (desde os crentes na redenção pela Revolução até aos que querem fazer passar a mensagem da suposta redenção transmitida pelos fundamentalismos religiosos, incluindo a corrente vaticanista que propaga Cristo Salvador servido pela gestão interesseira, imperial, visceralmente antidemocrática e pretensamente infalível do Papa).
Respeitando o antiamericanismo, compreendendo que não se pode ser boa pessoa e amar a América, não emparceiro com a histeria neste sentimento e na duplicidade dos que, pelo ódio à América, escondem filiações a projectos alternativos falidos que não deram igualdade e abdicaram da liberdade. Porque o facto é que qualquer alternativa ao paganismo iníquo e capitalista americano, desde as subordinadas às sotainas do Vaticano até aos punhos levantados virados para o Kremlin, deu em falhanços trágicos ou na alienação pela crença nas redenções fora do mundo. Todas com perdas incomensuráveis em vidas, alegrias, liberdade e inteligência. Sem América, tínhamos Gulag, Vaticano e que mais?
Obviamente que o mundo não tem de ser, nem deve ser, um mundo americano. Mas esse é o desafio lançado há muito pela América aos não americanos - fazerem
melhor! E o mundo não foi, ainda, capaz de responder a este desafio, gerindo equilíbrios (humanos, económicos e sociais) perenes, satisfatórios e exemplares entre democracia e equidade. E isso, convenhamos, não é culpa da América que se conserva prisioneira dos seus vícios e energias. De que se espera? Não é tempo de largar a desculpa expiatória de que a malvada eficácia americana nos seca toda a fonte de talento?