
Há dias, conversando por telefone com um amigo e antigo combatente na Guiné, a questão colocou-se (ou seja, a grande questão de fundo quando se fala da participação portuguesa nas guerras coloniais) teríamos sido ou não suficientemente decentes na forma como nos comportámos na guerra? Isto é, além do cumprimento de missões militares, onde a regra mínima só podia ser (para qualquer dos campos) o melhor para as NT e o pior para o IN, se era norma a prática de excessos e de desumanidades que ultrapassassem os resultados militares e se havia ou não respeito para com os guerrilheiros aprisionados.
O meu amigo garantiu que, na Guiné e pelo menos após a chegada de Spínola, o comportamento generalizado era o de um comportamento ético-militar exemplar, ou seja, fora dos combates, os guerrilheiros não só não eram maltratados, muito menos torturados, como seriam respeitados. Invocava ainda que isso não se devia a um acaso mas obedecia a regras impostas pelos altos comandos e integrando-se na filosofia da psico em que se procurava dignificar a condição militar perante as populações. Desta consideração, ele extraía que, fazendo o que tínhamos de fazer (combater), não tínhamos que nos envergonhar da nossa passagem pela Guiné.
Na minha experiência, também na Guiné, não assisti a nada que desmentisse este meu amigo. Era, de facto, assim e como ele diz. [Mas... (há sempre um mas)] Os militares a partir de determinada altura (os inícios das guerras foram mais selváticos de parte a parte), entendendo melhor os princípios da importância da ligação e conquista das populações, nas acções de contra-guerrilha, reprimiam as tendências para os excessos (embora, como todas as regras, tenham havido as suas excepções). Só que a mudança do comportamento militar (mais consentâneo com a ética da guerra) assentava num pressuposto de organização das tarefas o trabalho sujo era feito pela PIDE (cuja crueldade nas colónias era imensamente superior à utilizada na metrópole). Ou seja, as partes suja e limpa foi distribuído entre polícia e forças armadas, os prisioneiros capturados pela tropa eram submetidos a um primeiro interrogatório (que decorria de uma forma mais ou menos limpa) e depois entregues à PIDE que os submetia à tortura, ao assassínio, ao desaparecimento, ao envio para o Tarrafal ou ao aliciamento. Decentemente tratados pelos militares, os prisioneiros da guerrilha, quando entregues à PIDE, desapareciam do quadro das noções de humanidade. Um livro da historiadora Dalila Cabrita Mateus (*) demonstra como as coisas, combinadamente, se passavam na ligação PIDE-Forças Armadas nos teatros das guerras coloniais.
Ora, os militares combatentes sabiam deste jogo combinado entre trabalho limpo e trabalho sujo. Portanto, havia uma base de profunda hipocrisia consciente e representada, que não permite aos limpos militares dizerem, com inteira verdade, da sua estadia lá eu, e os outros, vimos de mãos limpas, cumprimos as regras da ética da guerra, não fomos desumanos para com aqueles que combatemos. Porque os crimes da PIDE (quase ainda totalmente desconhecidos quanto á sua extensão, desumanidade e número e identidade das vítimas) não foram um fenómeno exógeno à gerra colonial. As atrocidades pidescas foram parte fundamental na estratégia da guerra. E era a mesma guerra - a dos pides e a dos militares. Complementares. A lama de uns sujou os camuflados dos outros, porque a lama fez parte da presença portuguesa e da guerra que os portugueses travaram contra guinéos, angolanos e moçambicanos.
(*) A PIDE/DGS na Guerra Colonial 1961-1974, Dalila Cabrita Mateus, Ed. Terramar.
Imagem: Entrada do Campo de Concentração do Chão Bom (Tarrafal, Ilha de Santiago, Cabo Verde) reactivado para encarcerar combatentes anticoloniais (a pequena parte que sobrevivia aos tratamentos sofridos nas delegações coloniais da PIDE).